Tenho
lembranças, do meu tempo de criança, de um senhor que morava no centro de
Andrelândia, cujo nome verdadeiro desconheço.
Sei que, reservadamente, era chamado por todos
pelo apelido de Quincas Pipôco.
Era magro, alto, cabeça calva. Tinha andar ereto, voz grave, fala pausada e aparentava ser uma pessoa de muito respeito no trato. Deveria ter uns 70 anos de idade.
Ouvi dizer que era também muito respeitado (melhor, temido) pelos seus antecedentes na cidade, onde aportou como forasteiro em tempos de antanho.
Conta-se que chegou na Terra de André trajando um sobretudo preto, chapéu de lã marrom na cabeça e trazia ostensivamente na cintura um revólver calibre 38, com tambor, feito por encomenda, onde cabiam 18 balas. Verdadeira metralhadora portátil. A sua fama era de matador, que havia, inclusive, residido em Ibiritexas, nas proximidades da Capital mineira.
Teria se hospedado em um hotel nas proximidades da estação ferroviária, onde deixou estacionada uma espécie de carruagem. Na ficha de entrada no estabelecimento, no local destinado à origem, teria escrito com letra caprichada: “Velho Oeste”. Até hoje especula-se sobre a sua verdadeira procedência, seja no tempo ou no espaço. Incógnita ainda não solucionada. Verdadeira lenda urbana.
Posteriormente formou respeitada família na cidade, envolvendo-se em um único episódio em defesa do lar, quando disparou, do alpendre de sua casa, dezoito tiros em direção a outro forasteiro, conhecido por Dromedário, que só se salvou por ter se escondido atrás de um poste, que ainda hoje guarda os vestígios dos disparos. Quincas não errou nenhum. Por pouco o poste de concreto não foi atravessado, segundo renomados especialistas em balística e estruturas cimentícias que tivemos o cuidado de consultar.
Conquanto em dias normais fosse pessoa relativamente tranquila e de paz, Quincas Pipôco de vez em quando “entrava em campo” ou “invernava”, passando longos períodos dedicados ao consumo exacerbado da cachaça, ocasiões em que se tornava muito temido, pois nunca deixava de carregar o “três oitão” na cintura e seus antecedentes eram comparáveis aos do famoso “Billy the Kid”.
Um dos bares preferidos pelo nosso personagem era o do Tião da Laura, ao lado do Clube Guarani, no São Dimas, onde Quincas Pipôco costumava ficar por horas a fio, sem falar nada, apenas compartilhando o litrão da “marvada” com alguns poucos amigos (dizem que tinha apenas dois), entre os quais estava o irreverente violeiro Darci da Periquita, de saudosa memória.
Conta-se que Quincas Pipôco, inveterado mão de vaca, sempre pedia ¼ de porção de lambari agulha como tira-gosto. E só com o rabo de um dos pequenos peixes fritos costumava consumir cerca de oito doses de pinga.
Em um dia daqueles, depois de “ter tirado o zinabre da serpentina” até o início da noite, Quincas Pipôco tomou o rumo de casa e, quando passava defronte a uma igreja evangélica, na Rua Coronel José Bonifácio, percebeu um grande movimento no interior do templo, onde estava sendo velado o corpo do pastor que havia fundado a instituição na cidade, um senhor negro, de idade, muito caridoso e benquisto pelos andrelandenses.
Quincas Pipôco, para desespero e espanto de todos, subiu em direção ao interior do templo, onde se postou ao lado da “cabeceira” do caixão e ficou contemplando o defunto, em completo silêncio, por 47,56 minutos, em posição quase estática, fazendo breves movimentos apenas para melhor acomodar o 38 na cintura e ajeitar a "chantilena" do pesado relógio.
Depois da profunda contemplação do defunto, Quincas Pipôco – em tom solene - rompeu o silêncio e disse em voz grave, de forma pausada, exalando forte bafo etílico:
- Vou puxar um responso.
- Vamos rezar o Credo.
Contudo, em razão das convicções dos circunstantes, aquela oração (que se referia à Virgem Maria) não era aceita pela religião que professavam, de forma que Quincas Pipôco não obteve seguidores à sua convocação. Aliás, todos ficaram revoltados, conquanto em silêncio, em razão da má fama do intruso.
Mesmo assim, Quincas deu início à reza.
- Creio em Deus Pai, todo poderoso...
Ao perceber que havia “montado no porco”, pois a oração era absolutamente impertinente para o momento e local, Quincas Pipôco resolveu abreviar a sua inoportuna intervenção quando acabou de pronunciar as seguintes palavras:
- Padeceu sob Pôncio Pilatos.
Imediatamente fez uma pausa, ajeitou o 38 na cintura, respirou fundo e esbravejou em tom de revolta:
- Pôncio Pilatos !
- Grandessíssimo filho da puta !
- Ah se eu tivesse lá...
Em seguida, esperando ter se redimido com os circunstantes, Quincas Pipôco saiu meio cambaleante do templo, despedindo-se com a singela frase:
-Aleluia, Irmãos.
E tomou o rumo de retorno ao bar do Tião da Laura, onde Darci da Periquita cantava Raul Seixas e declamava composições psicodélicas sobre o Buraco Quente, que afirmava ter sido fundado há três mil anos, sendo mais velho que a própria Serra de Santo Antônio.
Conta-se que a reza inusitada de Quincas Pipôco, que foi amplamente noticiada na época, é, ainda hoje, motivo de reflexões teleológicas em altas esferas de estudos bíblicos, conquanto não haja nenhum pronunciamento oficial sobre a sua dura assertiva quanto ao designativo relacionado ao governador romano Pôncio Pilatos.
Tentamos contato com a Pontifícia Comissão de Altos Estudos Bíblicos do Vaticano para a Região do Rio Turvo, mas não obtivemos retorno até o fechamento deste post.
Esperemos.
Descanse em paz, Quincas Pipôco, grande figura do anedotário da Terra de André.
O Senhor sempre terá o nosso respeito.
Este era um espírito verdadeiramente cristão! Afinal, não poderia deixar de manifestar sua indignação diante do nome do covarde governador!
ResponderExcluirÉ mesmo incrível como a religiosidade permeia o imaginário de nosso povo, até mesmo nas anedotas!
Mais uma vez cumprimento nosso fecundo coletor de histórias! Um saudoso abraço!
EU fiz meu comentário imenso não sei onde saiu por favor verificar para mim
ExcluirBoa lembrança...kkk
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